Deixamos de nos comunicar através da palavra escrita manualmente, passamos a escrever e nos expressar através de máquinas (datilografar, escrever, computadores, telefones celulares, smartphones). Parece que a forma com que nos expressamos está cada vez mais ágil, eficiente, moderna. Até mesmo as músicas que ouvimos não possuem letras (algumas até dispensam instrumentos musicais).
Através de equipamentos tecnológicos, nós conquistamos a habilidade e a capacidade de acelerar o tempo, chegando a quase não utilizar mais as palavras. Para nossos quase mil amigos nas redes sociais, nós precisamos estabelecer novos códigos de comunicação, para que a mensagem seja mandada e compreendida em menos tempo que o comum (se comparado a escrita). Adaptações e modificações de palavras, gifs que sintetizam acontecimentos – políticos, sociais, econômicos, ou até mesmo em relação a seriados, novelas, filmes, obras de arte -, símbolos que dispensam palavras… e as imagens.
Fotografias que revelam muito mais do que apenas “roupas do dia”, “refeições”, “shows e eventos”, “cidades e lugares”. Estas fotografias criam um imaginário que nos aproxima cada vez mais da realidade, pela potência e profundidade dos símbolos apresentados. Nos sentimos familiarizados até mesmo com pessoas que nem conhecemos pessoalmente, lugares que nunca visitamos, comidas que nunca comemos e roupas que nunca vestiremos.
As fotos e imagens nos dizem coisas, e nós respondemos de forma rápida e prática: com um “click”. Um botão apenas faz todo o trabalho por nós, a fala é muda. Não é necessário mais ver uma pessoa todos os dias para vocês serem grandes amigos. Através de um reconhecimento visual e estético, criam-se vínculos virtuais-afetivos. Esteticamente, as vestes possuem um grande papel nesta relação, elas extrapolam o modo de ser dos indivíduos, quanto mais nos vestimos, mais nos expomos. Não temos o total controle da forma com que nos vestimos e de como os outros nos veem, simplesmente criamos imagens e tentamos representa-las através da vestimenta. Ora conscientemente, tentando moldar um “eu ideal”, ora a partir de estruturas sociais que incorporamos a partir das relações que estipulamos.
Essa estrutura que nos circunda, mas que ao mesmo tempo é modificada pelas nossas práticas, é chamada e “estrutura estruturada estruturante” de acordo com Bourdieu, ou também vista por antropólogos, como Sherry Ortner de “Teoria da prática”. Que através das práticas dos indivíduos, faz-se o “fazer do sentido”, não tendo assim, o sentido dado e pronto. Isso faz-nos compreender como esse “sentido ação” participa de um sistema.
Tal teoria inverteu formas essencialistas de se pensar certas comunidades, principalmente as tradicionais, pois esse viés trazia uma generalização da visão de um povo. A Teoria da Prática aborda questões históricas, como uma cultura é feita e refeita, como ela é construída a partir de relações de poder. Tirando assim a “essência” do conceito de cultura (essencialismo), apontando também a importância das questões históricas para os anos 80 (época em que Sherry Ortner escreveu).
Não é à toa que Franz Boas (1858-1942) dizia que as lentes que você enxerga são os olhos da sua cultura, pois atraídos através do olhar que temos em relação ao outro, criamos empatias ou apatias. Adornar-se, diferentemente de proteger-se das condições climáticas ou cobrir as “vergonhas”, tornou-se uma forma de se comunicar com o mundo, de criação de uma individualidade, uma espécie de subjetividade coletiva (lembrando Bourdieu). Fez com que, sem dizermos uma palavra sequer, sejamos enquadrados em um grupo específico, através do olhar do outro.
De acordo com AGUIAR:
“A imagem visual que você transmite nos primeiros dez segundos a uma pessoa que o vê pela primeira vez é o suficiente para que ela tire todas as impressões sobre você, baseada em sua aparência pessoal” (AGUIAR, 2003, p. 23).
Esse tempo é suficiente para formularmos um estereótipo e encaixar uma pessoa em algum grupo que já conhecemos ou acreditamos que ela faça parte, sem sequer ter trocado uma palavra com ela. Aí está o poder da imagem, e concomitantemente o poder da moda. Simmel dizia que a moda era uma fronteira entre o “ser e o não ser”. Pensando na redução dos significados da moda, pode-se esclarecer algumas questões ligadas a nomenclaturas. Vemos que a moda é um conceito mais amplo do que indumentária, pois indumentária é tudo que colocamos sobre o corpo, e a moda é tudo que colocamos sobre o corpo e também as relações que existem por trás dessa indumentária (gostos, estilos de vida, grupos). Parafraseando Boas, “as lentes que você enxerga são as vestes que cobrem o outro”.
Mas essa relação entre a imagem e a moda não é atual, na Alta Idade Média (460 a.C.) a indumentária não possuía muitas alterações ainda, foi a partir das cruzadas que houve uma grande mistura entre as formas de se vestir de diferentes culturas, alterando a forma com que essas pessoas se vestiam a partir dessas relações. Com a ascensão da burguesia por conta da expansão das relações mercantis, cada vez mais ela adquiria os bens que a nobreza possuía, fazendo com que a aristocracia mudasse sua forma de se adorar e vestir, tentando se diferenciar dos burgueses. Esse período marca o início da história da moda, e também das “leis suntuárias”, que eram leis que determinavam os tipos de tecidos, roupas, adornos, e jóias que eram específicos da aristocracia. Tais leis regiam até mesmo o tamanho dos sapatos que as pessoas poderiam usar, de acordo com seu posicionamento político e social (BRAGA, 2015). O “Dress Code” que nos deparamos ao ler em um convite de festa, é um filho das “leis suntuárias”.
No campo das artes, as representações feitas através de pinturas nos trazem símbolos importantes para pensarmos diferentes épocas. Um quadro muito importante nesse sentido é o quadro de Jan Van Eyck (1390-1441) “O casamento dos Arnolfini” (1434).
No quadro vemos inúmeros objetos, cores, símbolos, uma infinidade de elementos que podemos atribuir sentidos. Não cabe a este debate esmiuçar cada elemento presente no quadro, porém, alguns deles poderão sintetizar o que o quadro importa para nós no momento. O quadro mostra o casamento de dois filhos de mercadores italianos, eles possuem certa riqueza – de acordo com as vestes que utilizam -, como o tabardo de veludo da noiva, as sandálias para andar em casa, o penteado típico da época, entre outros fatores. Mostrando a posição social e econômica do casal através dos objetos contidos na obra. A potência dos objetos e das vestes foi sintetizada por Jan Van Eyck. “O casamento dos Arnolfini” foi um quadro muito importante no século XV por trazer objetos cotidianos e representá-los com uma carga simbólica muito forte.
Os quadros representavam os modos e costumes da época, a moda era um fator muito bem utilizado pelos pintores, tanto para representar um momento histórico (exemplo dos “Sans Culottes”[i] na Revolução Francesa), quanto para moldar o corpo feminino com o seu olhar (pensar os quadros de Maria Antonieta, com um “corpo idealizado”). Os quadros eram referências visuais para os membros da sociedade, seguindo tais padrões de vestimenta, e admirando tal imagem.
Dando um salto histórico e voltando para a questão da imagem atual, vemos que ela não possui tantas distinções em relação ao século XV, tirando o fato de atualmente conseguirmos representar não só os “nobres” e sim todos aqueles que tem acesso à internet. A imagem, a arte e a moda seguem juntas ressignificando nossas práticas, assim como nossas práticas as ressignificam. E atualmente temos outras áreas teóricas para podermos pensá-las, como a Antropologia Visual e da Imagem.
“A arte, como todas as outras coisas, está sujeita à moda, e precisamente por isso a moda contém essa ‘consciência inconsciente’ das condições reais da arte.” (SVENDSEN, 2010)
Referências
BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1972.
BOURDIEU, Pierre (2003), Os usos sociais da ciência, por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora UNESP.
BOURDIEU, Pierre (2015), A Distinção, crítica social do julgamento. Porto Alegre: Editora Zouk. 2ª reimpressão da 2ª edição.
BRAGA, João. Tenho dito. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2015. (p. 21-23)
ORTNER, Sherry B. “Teoria na antropologia desde os anos 60”. Mana, v. 17, n. 2, 2011 p.419-466.
ORTNER, Sherry B. “Uma atualização da teoria da prática”. in: Miriam Pillar Grossi, Cornelia Eckert e Peter Fry (Orgs.) Conferências e Diálogos: Saberes e Práticas Antropológicas. Blumenau: Nova Letra 2007.
SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2010 (p. 102-126)